segunda-feira, 21 de junho de 2010

Cante lá, que eu canto cá


Poeta, cantô de rua, Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua, Que eu canto o sertão que é meu.

Se aí você teve estudo, Aqui, Deus me ensinou tudo, Sem de livro precisá
Por favô, não mêxa aqui, Que eu também não mexo aí, Cante lá, que eu canto cá.

Você teve inducação, Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do sertão Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma paioça, Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem, Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida, Sabe o gosto que ela tem.

Pra gente cantá o sertão, Precisa nele morá,
Tê armoço de fejão E a janta de mucunzá,
Vivê pobre, sem dinhêro, Socado dentro do mato,
De apragata currelepe, Pisando inriba do estrepe,
Brocando a unha-de-gato.

Você é muito ditoso, Sabe lê, sabe escrevê,
Pois vá cantando o seu gozo, Que eu canto meu padecê.
Inquanto a felicidade Você canta na cidade,
Cá no sertão eu infrento A fome, a dô e a misera.
Pra sê poeta divera, Precisa tê sofrimento.
Sua rima, inda que seja Bordada de prata e de ôro,
Para a gente sertaneja É perdido este tesôro.
Com o seu verso bem feito, Não canta o sertão dereito,
Porque você não conhece Nossa vida aperreada.
E a dô só é bem cantada, Cantada por quem padece.

Só canta o sertão dereito, Com tudo quanto ele tem,
Quem sempre correu estreito, Sem proteção de ninguém,
Coberto de precisão Suportando a privação Com paciença de Jó,
Puxando o cabo da inxada, Na quebrada e na chapada, Moiadinho de suó.

Amigo, não tenha quêxa, Veja que eu tenho razão
Em lhe dizê que não mêxa Nas coisa do meu sertão.
Pois, se não sabe o colega De quá manêra se pega Num ferro pra trabaiá,
Por favô, não mêxa aqui, Que eu também não mêxo aí, Cante lá que eu canto cá.

Repare que a minha vida É deferente da sua.
A sua rima pulida Nasceu no salão da rua.
Já eu sou bem deferente, Meu verso é como a simente
Que nasce inriba do chão; Não tenho estudo nem arte,
A minha rima faz parte Das obra da criação.

Mas porém, eu não invejo O grande tesôro seu,
Os livro do seu colejo, Onde você aprendeu.
Pra gente aqui sê poeta E fazê rima compreta,
Não precisa professô; Basta vê no mês de maio,
Um poema em cada gaio E um verso em cada fulô.

Seu verso é uma mistura, É um tá sarapaté,
Que quem tem pôca leitura Lê, mais não sabe o que é.
Tem tanta coisa incantada, Tanta deusa, tanta fada,
Tanto mistéro e condão E ôtros negoço impossive.
Eu canto as coisa visive Do meu querido sertão.

Canto as fulô e os abróio Com todas coisa daqui:
Pra toda parte que eu óio Vejo um verso se bulí.
Se as vêz andando no vale Atrás de curá meus male
Quero repará pra serra Assim que eu óio pra cima,
Vejo um divule de rima Caindo inriba da terra.

Mas tudo é rima rastêra De fruita de jatobá,
De fôia de gamelêra E fulô de trapiá,
De canto de passarinho E da poêra do caminho,
Quando a ventania vem, Pois você já tá ciente: Nossa vida é deferente
E nosso verso também.

Repare que deferença Iziste na vida nossa: Inquanto eu tô na sentença,
Trabaiando em minha roça, Você lá no seu descanso,
Fuma o seu cigarro mando, Bem perfumado e sadio; Já eu, aqui tive a sorte
De fumá cigarro forte Feito de paia de mio.

Você, vaidoso e facêro, Toda vez que qué fumá,
Tira do bôrso um isquêro Do mais bonito metá.
Eu que não posso com isso, Puxo por meu artifiço Arranjado por aqui,
Feito de chifre de gado, Cheio de argodão queimado, Boa pedra e bom fuzí.

Sua vida é divirtida E a minha é grande pená.
Só numa parte de vida Nóis dois samo bem iguá:
É no dereito sagrado, Por Jesus abençoado Pra consolá nosso pranto,
Conheço e não me confundo Da coisa mió do mundo Nóis goza do mesmo tanto.

Eu não posso lhe invejá Nem você invejá eu,
O que Deus lhe deu por lá, Aqui Deus também me deu.
Pois minha boa muié, Me estima com munta fé,
Me abraça, beja e qué bem E ninguém pode negá
Que das coisa naturá Tem ela o que a sua tem.

Aqui findo esta verdade Toda cheia de razão:
Fique na sua cidade Que eu fico no meu sertão.
Já lhe mostrei um ispeio, Já lhe dei grande conseio
Que você deve tomá.
Por favô, não mexa aqui, Que eu também não mêxo aí, Cante lá que eu canto cá.


Patativa de Assaré/Antônio Gonçalves da Silva
Do livro: "Cante lá, que Eu Canto cá", Ed। Vozes, 1978, RJ

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